Sérgio Lopes e Diogo Martins, ativistas da City Able, mostram
alguns dos obstáculos que pessoas com mobilidade reduzida enfrentam, neste caso
no Saldanha [vídeo], onde convive o melhor e o pior que há em Lisboa em termos
de acessibilidade.
Em frente ao Atrium Saldanha, numa
das artérias principais da cidade, Diogo Martins aguarda à sombra pelo colega
que tarda em chegar. A sustentar o corpo, tem um aparelho massivo, com mais de
200 kg: uma cadeira de rodas bem equipada, que lhe permite deslocar-se para
todo o lado.
Passados alguns minutos, Diogo avista, ao longe, o companheiro.
É Sérgio Lopes quem chega, também ele montado numa moderna cadeira de rodas.
Desloca-se a grande velocidade em direção ao centro comercial, embalado pelo
piso plano. Diogo e Sérgio cumprimentam-se: são amigos de longa data, colegas
de trabalho e companheiros de luta.
A luta pela acessibilidade no espaço público tem moldado a vida
de ambos nos últimos anos. Trabalharam em conjunto pela primeira vez no
movimento (d)Eficientes Indignados, em 2012, que concretizou a primeira ação
pública organizada das pessoas com deficiência pela reivindicação dos seus
direitos. A partir daí, foi sempre a somar ao curriculum vitae. E a luta, que sempre tinha
sido apenas voluntária, tornou-se uma missão profissional.
Através de várias associações e projetos, colaboraram diretamente com empresas de transporte público e entidades estatais – incluindo a Câmara de Lisboa, no projeto de acessibilidade pedonal, de adaptação da calçada portuguesa. Desta atividade, nasceu a vontade de criar um negócio novo, mas com um propósito político: a City Able, a primeira consultora privada para a acessibilidade.
As pessoas com deficiência no centro da discussão da mobilidade
“O Diogo foi desafiado e depois estendeu-me o desafio de criar a empresa”, lembra Sérgio Lopes. Tinham sido contactados pela consultora TIS, de transporte e inovação de sistemas, para ajudar com a recolha de dados para um projeto europeu que precisava de arranjar um grupo de pessoas para fazer um levantamento sobre a acessibilidade em Lisboa: o relatório Mapping Accessible Transport for Persons with Reduced Mobility[Mapeando o Transporte Acessível para Pessoas com Mobilidade Reduzida], com informações sobre o estado do transporte acessível em várias cidades da União Europeia.
Diogo Martins é um ativista da luta pela acessibilidade para
pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida e fundador, com Sérgio Lopes, da
City Able, a primeira consultora privada para a acessibilidade. Foto: Líbia
Florentino.
“O que nós fizemos nesse projeto foi, numa primeira fase,
desenvolver [a metodologia] de recolha e seleção de informação”, e depois, numa
segunda fase, “selecionar uma série de lugares em Lisboa e proceder à recolha
com um grupo de pessoas com deficiência que recrutámos especificamente para
este projeto. E que foram pagas para isso, que é um dos nossos princípios”,
explica Diogo Martins.
Desse projeto, saíram as bases para a empresa e em janeiro de
2019 nasce a City Able, com a função de contribuir para o desenvolvimento de
projetos que envolvam diretamente as pessoas com deficiência nas questões que a
elas digam respeito, como a acessibilidade urbana ou o transporte público
inclusivo. O objetivo é tornar os serviços, sejam eles de transporte, sociais
ou culturais, mais acessíveis para todos.
Mas, afinal, o que são acessibilidades? Com uma cadeira de
rodas, os passeios tornam-se mais atribulados, as calçadas mais íngremes, os
obstáculos que podem ser facilmente contornados a pé tornam-se maiores. Isto,
claro, se as ruas e edifícios não estiverem devidamente adaptados para pessoas
com deficiência (não só pessoas com mobilidade reduzida, mas também cegas, por
exemplo).
Por contraste, a acessibilidade é a qualidade do que é
acessível. “É uma questão de adaptarmos o mundo à diversidade de necessidades
que existem”, resume Diogo Martins.
No Saldanha, encontramos um tubo de ensaio para a acessibilidade. Uma amostra da cidade onde convivem, lado a lado, exemplos do melhor e do pior que se tem feito na adaptação das ruas em Lisboa.
Uma cidade, dois sistemas e o Saldanha como caso de estudo
Segundo os Censos de 2011, são mais de 293.989 (ou seja, mais de
7,07%) os lisboetas com mobilidade reduzida. Os dados incluem a população com
dificuldade ou incapacidade em andar, subir degraus ou deslocar-se, com mais de
5 anos de idade.
Com tanta gente dentro desta franja invisibilizada, qual o
aspeto da cidade para elas? O que já foi feito e o que falta fazer para
construir uma cidade inclusiva? Para o olho treinado, a resposta está nas ruas.
Do Atrium até à loja do cidadão no Saldanha, são apenas dois quarteirões de
distância. Mas de um lugar para o outro, o cenário muda radicalmente.
Junto à Praça do Saldanha, Diogo e Sérgio conversam lado-a-lado
na rua. As cadeiras deslocam-se sem problemas sobre os pisos planos, os
passeios largos e as passadeiras adaptadas da área em volta da praça. Mas
basta-lhes virar uma esquina, que tudo muda: o chão passa a ser de calçada
portuguesa, pouco amigo da pessoa com deficiência, com pedras levantadas e
obstáculos para contornar.
O problema maior surge junto ao destino, a loja do cidadão, a
que Diogo quer aceder. Há um lugar de estacionamento para pessoas com
deficiência, mas, paradoxalmente, não tem entrada rebaixada. O mesmo sucede no
passeio junto à loja e os amigos ensaiam uma tentativa falhada de passar com as
cadeiras de 200 kg por cima da pequena elevação – mas, como sabem, não serve de
nada.
Acabam por subir mais ao lado, aproveitando uma entrada de
garagem rebaixada. Quem passa, é despertado pela situação e solidariza-se,
mesmo que não compreenda como deve ajudar.
– Quer que
desvie a carrinha?
– Obrigado!
Mas não é preciso, não é esse o problema.
– Será que se
for por ali já dá?
– Não, desculpe, temos de ir à volta. Por toda a cidade, as intervenções municipais de adaptação de ruas são feitas a pensar em obstáculos e percursos individuais. Mas “se um lado está adaptado e o troço imediatamente a seguir já não, não serve”, porque um deslocamento exige continuidade, explica Diogo Martins. “As nossas cadeiras dão para estas aventuras. Uma pessoa que não tem isso, possivelmente desiste de vir.”
Desenhar cidades acessíveis “como uma mancha de azeite”
Sérgio Lopes, cofundador da City Able e ativista pela
acessibilidade para pessoas com deficiência e ou mobilidade reduzida. Foto:
Líbia Florentino.
Nos últimos anos, têm-se assistido a mudanças profundas na
cidade. O país mudou e Lisboa esteve na linha da frente das cidades acessíveis.
“Pode dizer-se que tem havido muita coisa, ou, pelo menos, iniciativa,
projetos. Colocar em prática tem sido mais complicado. Os projetos são muito
bons, mas depois quando se avança e se dá um passo na melhoria de um trajeto
fica por aí e não se continua a espalhar na cidade toda”, alerta Sérgio Lopes.
Paula Teles é engenheira e presidente do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade (ICVM). Em conjunto com a associação Salvador, o instituto desenvolveu um estudo à acessibilidade nos municípios portugueses, que concluiu que 70% dos municípios portugueses nunca planeou condições de acessibilidade. Não é o caso de Lisboa, que tem um plano municipal e guidelines para as intervenções, mas o paradigma mantém-se.
“[Estes números] significam que continuamos no nosso país a
utilizar os envelopes financeiros para fazer intervenções avulso. O que são
intervenções avulso? Na acessibilidade, são aquelas que não permitem sistemas
de continuidade”, explica Paula Teles.
“Se fizermos hoje a eliminação das barreiras num passeio, daqui
a um ano rebaixamos uma passadeira noutro sítio, etc., estamos a fazer
alterações para a acessibilidade que são relevantes, mas não estão planeadas
para que possam de imediato ser utilizadas para uma deslocação para alguém que
tenha problemas de mobilidade”, conclui.
A alternativa, explica a engenheira e professora de design for all (desenho
universal), é pensar as cidades como uma mancha de azeite, que se alastra, de
forma uniforme, do centro para a periferia. Uma visão holística e integrada,
necessária à acessibilidade. “É preferível ter uma menor área de intervenção,
mas garantir que essa área é acessível em pleno a pessoas com cadeiras de
rodas, cegos, etc., e aumentá-la gradualmente, do que tomar várias medidas
avulso em áreas separadas da cidade.”
O design for all, um conjunto de princípios orientadores que engenheiros e técnicos devem utilizar para que os equipamentos possam ser usados por todos, é uma prática cada vez mais necessária, à medida que a população envelhece.
Que progressos na acessibilidade em Lisboa?
Lisboa apresenta-se com circunstâncias muito melhores que outros
municípios do país, um trabalho pelo qual Paula Teles se congratula. Braga,
Porto e Vilamoura são exemplos de cidades acessíveis, com especial destaque
para Vilamoura, fruto do grande fluxo de turismo sénior nos últimos anos. Já
nas zonas rurais, as carências são enormes.
Na capital, o investimento maior, desde 2013, tem sido na acessibilidade pedonal, que inclui a adaptação de ruas e passeios e a criação de alternativas à calçada portuguesa. Mas “Lisboa não é só as Avenidas Novas, a Fontes Pereira de Melo, o Saldanha e a zona ribeirinha”, alerta a presidente do ICVM. É necessário expandir para a periferia. “Vemos muita coisa a acontecer, o que é bom, não considero que estejamos atrás de outras cidades (europeias). Está a evoluir, mas não tão rápido quanto queríamos. Tem de haver alguma aceleração no processo e tem de haver mais coragem para aplicar as mudanças”, afirma Sérgio Lopes.
Para garantir que os projetos de melhoramento da acessibilidade
e de mobilidade inclusiva são bem feitos, é necessário incluir as pessoas com
deficiência no processo e na conceção da metodologia, alertam os fundadores da
City Able. Foto: Líbia Florentino.
A estratégia MOVE Lisboa 2030, da Câmara Municipal de Lisboa,
para a mobilidade na cidade, expressa a vontade de continuar a evoluir no
sentido da inclusão da pessoa com deficiência, mas de que forma e com que
meios, não é claro.
Para garantir que os projetos são bem feitos, é necessário incluir as pessoas com deficiência no processo e na conceção da metodologia, alertam os fundadores da City Able. Até porque “as necessidades de uma pessoa com cadeira de rodas não são as mesmas de uma pessoa com bengala, ou de uma pessoa cega”, completa Diogo. É preciso escutar todos e deixá-los testar as águas, para garantir que não se desperdiça dinheiro em intervenções inúteis. A recolha de dados efetuada pela City Able para o relatório europeu Mapping Accessible Transport for Persons with Reduced Mobility concluiu que, na cidade, os problemas detetados mais frequentemente encontram-se nas zonas de transbordo ou de espera pelo transporte, poucas vezes adaptados para receber pessoas com mobilidade reduzida, e no acesso ao utilizador da cidade a dados sobre a acessibilidade de espaços públicos e estabelecimentos privados.
Andar de cadeira de rodas na cidade das sete colinas
Junto à loja do cidadão, Sérgio relata o trajeto para chegar até ao Saldanha. Veio “de cadeira” para evitar transtornos que pudessem surgir nos transportes – porque tem uma cadeira que lhe permite fazer isso.
Fez a Alameda pela estrada, pois a largura do passeio não lhe permite usá-lo. “Não é coragem nenhuma, é um risco. Se um dia houver um acidente, porque luto pelos meus direitos, questiono-me quem assumirá responsabilidade. Como é óbvio, a culpa não é do condutor se sou eu que estou na estrada, mas ali não há alternativa.”
“As pessoas com deficiência têm sempre de planear qualquer
deslocação com grande antecedência”, diz. No comboio, um aviso de 24 horas de
antecedência precede a viagem. Na carris, os autocarros em princípio estão
preparados, mas problemas e avarias não são invulgares. Veterano da causa,
Sérgio já chegou a fazer um protesto em frente a um autocarro noturno que lhe negou serviço.
A lei portuguesa garante o acesso pleno aos serviços em
condições de acessibilidade, mas na prática nem sempre se cumpre. Falta
fiscalização nos acessos planeados nas entradas a edifícios, públicos e
privados.
Nos transportes, a aquisição de viaturas é feita pelas empresas transportadoras, de gestão privada. A lei obriga-as a comprar veículos com rampas e acessibilidade, mas estas nem sempre optam pelas melhores condições para suportar equipamentos modernos.
O que se separa a lei e a prática
“Por um lado, temos leis muito boas a respeito das acessibilidades em Portugal. Na compra de autocarros, é obrigatória a aquisição (em conformidade com as leis da acessibilidade), independentemente destes serem veículos novos ou velhos. O problema depois é a qualidade daquilo que vem instalado. Ou seja, as empresas não querem saber”, afirma Diogo. Quando os veículos chegam ao país, em segunda mão, “já vêm ultrapassado em termos tecnológicos e de acessibilidade.”
“A lei obriga
a adaptar? Obriga. Se as pessoas tiverem o conhecimento e a consciência de que
têm direito de aceder a qualquer lugar como qualquer outro cidadão, então têm e
ponto. É só isso que precisam de saber”.
Sérgio Lopes
O que qualifica uma situação de discriminação pode parecer dúbio
para quem está de fora, mas para Sérgio Lopes é claro: “A lei obriga a adaptar?
Obriga. Se as pessoas tiverem o conhecimento e a consciência de que têm direito
de aceder a qualquer lugar como qualquer outro cidadão, então têm e ponto. É só
isso que precisam de saber”.
Por isso, a City Able quer contribuir para uma solução mais
positiva e inclusiva, como muitas das que têm sido implementadas na cidade,
focada nas vozes das pessoas com deficiência. E elas, defensoras da vida
independente como Diogo e Sérgio, têm muito a dizer.
“Já pessoas antes de nós lutaram por isto. Hoje, lutamos nós. O que não queremos é que se continue a lutar amanhã”, diz Sérgio. “Não! Não queremos é que lutem pelo mesmo. Porque a sociedade evolui e nós evoluímos com ela”, completa Diogo. “O problema é daqui a vinte anos ainda estarmos a lutar pela mesma coisa. É isso que não queremos. Pela causa, a gente vai.”
por Luzia Lambuça
* Luzia Lambuça é vilafranquense de coração e lisboeta por opção. É estudante de Ciências da Comunicação na FCSH-UL e está a estagiar na Mensagem de Lisboa. Este texto foi editado por Catarina Pires
in https://amensagem.pt/2021/08/31/pessoas-deficiencia-deslocacoes-lisboa-acessivel/