1.
Só aparentemente, não haveria nada como ler o Curriculum Vitae para se entender a razão pela qual o ICVM / RCVE decidiu homenagear Carlos Silva e Luís Silvestre.
Mas uma lista cronológica de acontecimentos de vida profissional que ilude a relação da profissão com a vida.
Ora, a vida nem sempre é linear como o tempo. Ondula, circula, abranda, acelera, amarra, desata, plana, acontece.
Por isso, se optou pelo modo como são vistos, por nós, aqueles que ora homenageamos e que tantas e boas recomendações, direta e indiretamente, nos alimentam e fazem crescer o nosso e outros quotidianos.
Dão-se, assim, umas pequenas notas de reconhecimento e afeto, necessariamente curtas, porque a modéstia e humildade dos grande homens e mulheres assim o exigem, impedindo eloquentes e longos discursos de si. Assim faremos:
2.
Woody Allen afirmava o potencial do seu sexto sentido não negando que o seu problema eram os outros cinco.
Do mesmo modo, lemos, falamos e escrevemos fluentemente de cidades, mas quando temos de escrever sobre as pessoas que as habitam tudo torna mais difícil. E quando elas são de exceção, torna-se mesmo impossível.
As variáveis de uma cidade ou vila são difíceis de compaginar porque, sendo sobretudo humanas, a sua descrição difere de dia para dia. Mesmo ao longo de um só dia, são diversas as formas de descrever um mesmo e singular lugar. Assim, se descobre as múltiplas cidades que habitam a cidade e que, no limite, cada um de nós é uma cidade, dentro da cidade.
Se são assim tantas as variáveis que incorporam o olhar pela cidade, imagine-se a sua infinitude ao definir as pessoas que as habitam, sobretudo as que traduzem as suas acções pela via de excelência.
Dar parte de si à cidade, leia-se à humanidade, é o mesmo que dar aos outros parte da sua vida por um desígnio comum. Significa dar um tempo para além do seu, dar um tempo para além de si.
Dar este tempo é também dar um espaço, porque um sem o outro não fazem existir cidades e vilas e territórios e gente.
Ampliar a geografia do estritamente pessoal é dimensionar o mundo pelos grandes sonhos da paz, da solidariedade, dos direitos universais, da igualdade, da liberdade e da civilização.
Não obstante, hoje, porque estes homens ou seus iguais de princípios e causas, por lá não passaram, ainda há cidades que estão aquém de si próprias:
Cidades de água mediterrânica onde a vida é tão frágil que está ao sabor da maré, do vento e da pequenez.
Cidades de areia sem tolerância religiosa, eterna desculpa de luta de poderes fratricidas.
Cidades balcãs, tão perto de todos e tão longe de nós.
Cidades lineares de gente em êxodo até aos muros e fronteiras da indiferença.
Mas também há gente que são pessoas como nós e um pouco mais além. Que exprimem os seus quotidianos em horizontes temporais que vão tão longe, que a existência de uma longa vida de empenho banha e contagia o mundo.
3.
Uma das grandes conquistas da humanidade é o do direito à habitação. Aí se constroem mundos com histórias, desenvolvem afetos infinitos feitos de laços de sangue que se enlaçam.
Não há dignidade sem habitação. Não há vida própria ou comum. Não há espaço público sem o construído. Não há sociedade envolvida sem espaço comum. Não há direitos sem o essencial da habitação.
Se há um tema em que as divergências entre um certo mercado e um direito essencial é o da construção e da habitação. Não há hipotecas de habitações, há hipotecas de vidas inteiras.
Carlos Silva entra no mundo desta forma, na luta da dignidade, pelos direitos, pela civilização. Presidente da Federação das Cooperativas de Habitação, com os seus pares construiu um outro Portugal, e muitas cidades. Naquele espaço de sonhos coletivos que se seguiu ao 25 de Abril, a habitação viveu em tempos incomuns e fez parte das possibilidades que pareciam impossíveis.
Que melhor dizer que o 25 de Abril foi uma impossibilidade tornada possível e que melhor dizer que se estabilizou sob a forma de democracia com o trabalho na habitação condigna da qual as Cooperativas de Habitação, foram um elemento determinante.
Por isto acontecer, muito se deveu a tantos anos, tantas capacidades e competências, tanta determinação em prol de um dos nossos primeiros direitos: o da habitação.
Devemos muito ao 25 de Abril e o 25 de Abril deve muito a alguns.
Muito obrigado Carlos Silva!
4.
De outra forma, mas do mesmo determinante modo, a defesa do património impõe sobretudo atos de contínua inteligência primeiro e muita determinação a seguir.
Grande parte do nosso país é caminho-de-ferro. A ele se deveram povoações inteiras, desenvolvimento, vida, economia e gentes. Eram rios que drenavam vida e criavam bacias sociais, mosaicos culturais e paisagens humanizadas.
Depois o tempo parou, o som foi desaparecendo, a vida diminuindo, as povoações despovoando, os filhos despedindo-se dos pais. Fica da história um canal um canal em cada latitude e longitude. Em muitos casos, talvez só isso e a memória que ele densifica, na certeza que um tempo circular da história o irá retomar.
Apagar da história é a primeira das impressões epidérmicas coletivas perante um tempo que deixa de ser útil.
Foi aí que Luís Silvestre se interpôs. Não deixou deitar o tempo fora, nem a história, nem os significados, nem a memória do futuro. Mais do que isso.
A sua perspicácia, tenacidade e perseverança faz com que os nossos territórios tenham hoje formosas e seguras canais cicláveis, recuperação de estações, novas vidas.
No seu Curriculum consta “Técnico/Gestor do Património Desativado da REFER”, que palavras poderemos ter para quem inverte a banalidade dos conceitos empedernidos, petrificados na letargia de um senso comum adormecido e desesperançado e o transforma em Património Ativado para a sustentabilidade universal.
Amanhã lá estarão a infraestrutura para receber a vida de autor, certamente com interpretação diferente, mas com vida vivida na mesma, que sem esta conservação ativa, jamais seria possível.
Muito obrigado Luís Silvestre!